- Tenho me ocupado com a sensação de que sou um gênio. Com a certeza, na verdade. Sou desses caras que saem andando por aí cultivando pequenezas interessantes tipo como fazer um outdoor com tábuas de construção e musgo, escutando sempre uma banda finlandesa de tecnofunkcelta que só eu conheço, sempre com uma camiseta sem estampa pelas entrequadras até chegar na faculdade e vomitar toda a minha pesquisa sobre Guerra e Paz na carinha rosada da minha orientadora substituta de semiótica. Eu sou o cara, devo admitir. E eu sou bonito também. Bonito como um ator de características intimistas atravessando a ponte do Brooklyn dentro de um táxi. Bonito como Verlaine. Bonito como Troffaut ainda jovem. Fanfarrão como Tolstói, sedutor como Maiakovsk. Minha simpatia não é lá essas coisas, devo confessar, mas sou sorriso na medida certa e sei fazer cara de agradecido quando é necessário. Eu sou demais. E você, o que faz aqui?
- Nesse feriado, de barriga pro ar e olhando o pôster da Sheila Carvalho pelada de quinze anos atrás que o antigo dono da minha kit colou no teto, eu sorria gostoso cada vez que eu me lembrava de quando a gente era só a gente. Duas crianças passeando pela 508 sul, brincando de acreditar que o mundo ficava melhor depois de ouvir o último disco da Legião, ou conversando ao som de Clash que vinha do Café das Moscas. Ele ficava tão engraçado quando fazia careta pr'os ônibus que passavam pela W3, lindo. E tudo que eu queria era um amor assim, pra sempre. Amor de Eduardo e Mônica. Amor que a gente parecia ter. Nada de mais.
- Tô com sede, vamos tomar uma Coca-Cola?
- Vamos, tô precisando mesmo fumar um cigarro. Tem fogo? Quente aqui, né?
- Toma aqui. Pois é, acho que o ar condicionado deve estar com defeito. Você vem sempre aqui?
- Que pergunta mais doida pra uma moça na fila do analista! Não, não venho não, mas vou passar a vir mais. E você?
- Eu tô aqui sempre. Me arruma um cigarro. Ah, filtro vermelho, quero não. Tô parando, tentando diminuir. Minha irmã fala que é viagem, que eu tô mentindo pra mim mesmo quando digo que vou parar e peço um cigarro de filtro normal. Deve ser mesmo.
- Você é tão gente fina, não sei nem por quê tá aqui.
- Poxa, obrigado. Mas é isso mesmo que eu venho tratando. Sou gente fina demais, inteligente demais, bonito demais. De gente assim ninguém gosta.
- Pois é. Vai fazer alguma coisa na sexta às oito?
- Sei não. Tava pensando em terminar minha dissertação tomando vinho. Por quê?
- Posso ir?
- Ir onde? Comigo?
- Sim. Sua dissertação é sobre o quê?
- Literatura tcheca.
- Ah, você gosta do Kundera?
- Pô, o cara é foda.
- Acho que a gente vai se dar bem.
- Eu também.
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